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À Frente, o Passado

Nilson Lage

Há certas lembranças que, embora não sendo íntimas, adoraríamos guardar para nós mesmos. Exporíamos ao mundo somente outras, promissoras ou engraçadas, que alimentam esperança, alegria ou entusiasmo.

Assim com o Diário Carioca: o introdutor no Brasil do lead, da uniformidade gráfica, de padrões lingüísticos decorrentes do movimento de renovação literária da Semana de Arte Moderna; a redação em que conviviam Pompeu de Souza, Luís Paulistano, Carlos Castelo Branco, Jânio de Freitas, Nílson Viana, Evandro Carlos de Andrade, José Ramos Tinhorão, Luís Edgar de Andrade, Oscar Maurício de Lima Azedo; o lugar em que, afastadas as mesas no final do expediente, começo da madrugada, jogava-se futebol com bola de meia; o inventor da sigla JK e que pela primeira vez contou a história do mineiro que comprou um bonde de um carioca vigarista; o veículo dos artigos políticos de J. E. de Macedo Soares e de Danton Jobim; meu primeiro emprego, em 1955, quando pretendia custear o estudo de medicina, e descobri o jornalismo.
 

No entanto – e me custa escrever os parágrafos que se seguem –.meu primeiro chefe, com quem trabalhei por alguns meses, nos momentos agudos da crise econômica em que vivíamos (o Diário atrasava sistematicamente o pagamento, de dias, semanas ou meses), passava no Zico, o banqueiro de bicho que era dono de um bar na Praça Mauá, e apanhava dinheiro; levei-o, uma vez, bêbado, para a casa pobre de um conjunto proletário, onde vivia com mulher e filhos. O colunista da página era um ex-perito de criminalística que tinha vários jóqueis na Delegacia de Costumes. Jóqueis eram policiais indicados para funções rendosas junto a prostitutas e bicheiros; a indicação representava participação do patrono do policial na caixinha administrada pela Chefatura de Polícia.
 
A maior parte do tempo, eu ficava ao telefone falando com setoristas de hospitais (que recebiam gratificação rateada entre vários jornais para coletar dados) ou pessoas, geralmente policiais, que trocavam o fornecimento eventual de informações pela menção de seus nomes nas matérias ou pela carteirinha de jornalista. Toda vez, tinha que formular as mesmas perguntas, porque os interlocutores, embora desempenhassem há anos o papel de informantes, não conseguiam estabelecer relações causais, omitiam detalhes relevantes e avaliavam mal a importância do que acontecia. Começavam invariavelmente pelos nomes dos personagens, seguidos de um código tal como bbc45 (brasileiro, branco, casado, de 45 anos), e aí contavam o que havia acontecido, numa linguagem que incluía “o indigitado” (o acusado), “o indivíduo Fulano” (o bandido), “tombou em decúbito dorsal” (caiu de costas), “sofreu uma contusão na região occipto-frontal” (levou uma pancada na cabeça) e por aí em diante; copiavam, em suma, boletins de ocorrências e fichas médicas, pouco se importando com o que significavam as palavras.

As razões do copy desk

Quando, tempos depois, passei a trabalhar no copy desk, rapidamente descobri porque o jornal era quase todo reescrito: muitos dos repórteres, alguns com longo tempo de profissão e experiência na coleta de informações, não apenas não dominavam a técnica jornalística que estava sendo introduzida como jamais a dominariam: simplesmente não sabiam escrever. Textos chegavam com erros de regência, concordância, ortografia, às vezes contraditórios ou ininteligíveis. As “salas de imprensa”: em regra, atuavam impedindo o acesso de jornalistas “não acreditados” às fontes internas de serviços públicos e instituições. Também em regra, os “acreditados” complementavam o salário miserável pago pelo jornal com empregos ou favores das entidades que deviam cobrir; no mínimo, a corretagem de anúncios. Era comum um sistema em que um “acreditado”, escolhido por rodízio ou terceirizado pelos demais, escrevia todas as matérias do dia e distribuía em cópias de carbono, em papel fino, aos colegas; essas cópias ou chegavam diretamente aos editores ou eram redatilografadas, com poucas ou nenhumas emendas, pelo “acreditado” que trabalhava (?) para o jornal. Daí, a única forma de não publicar matérias iguais às dos concorrentes era mudar o texto na redação. Raramente o setorista fazia uma matéria “exclusiva”, e promovia, então, bastante, o seu esforço.
 
Do ponto de vista formal, havia uma multidão de jornalistas, com carteiras funcionais de sindicatos (o verdadeiro e os fantasmas), de associações existentes e inexistentes, de veículos reais ou fictícios, de “cursos de jornalismo” que se limitavam a breves ciclos de palestras de políticos e figurões. Ser ou ter sido jornalista significava, para empresários, acadêmicos e profissionais liberais, um título acrescentado a seus currículos; para estelionatários, bicheiros, proxenetas e marginais de todo tipo, o direito, principalmente, à prisão especial (quem já viu um xadrez de delegacia brasileira sabe o quanto isso é importante); para pequenos vigaristas e espertalhões, o poder de dar carteiradas em boates, bares, nos casos de intervenção eventual do policiamento ostensivo etc.
 
Outros estímulos à proliferação desses “jornalistas” dependiam de registro no Ministério do Trabalho (a regulamentação profissional é de 1938), mas os funcionários não podiam negar esse reconhecimento legal desde que o requerente tivesse trabalhado, ainda que por pouco tempo, em um veículo (diário, semanário, mensário, anuário ou devezenquandário); que alguma empresa (para perto de uma dúzia de jornais circulando, os registros de veículos no Rio de Janeiro estava na ordem de centenas) declarasse que ele trabalhou; ou, enfim, gozasse da proteção de um bom padrinho. As regalias (a exceção é a prisão especial, a que têm direito graduados em nível superior) foram suprimidas, à medida que a profissão se moralizava: a isenção do imposto de renda, que na época beneficiava executivos da indústria da informação e raríssimos profissionais (por exemplo, um David Nasser, cujas aventuras e negócios são relatados no livro Cobras criadas, de Luís Maklouf Carvalho); passagens aéreas nas poltronas não vendidas dos aviões (também fora da realidade da época, a não ser para as próprias empresas, seus diretores em férias e jornalistas a serviço).
 
Finalmente, um fator imaginário funcionava e ainda funciona: acadêmicos e profissionais liberais acreditam que, por trabalhar numa redação, qualquer um de nós “comanda a opinião pública”; ser jornalista seria fator importante, portanto, para quem tem ambições políticas. Essa é a visão publicística do nosso ofício, correspondente a uma realidade anterior à revolução industrial ou a momentos históricos específicos, como a Revolução Russa ou a ascensão do nazismo na leniente República de Weimar.
 
A profissão tinha, assim, dois níveis: a dos jornalistas de verdade e a dos falsos jornalistas. E duas categorias éticas: os que viviam de salários pagos pelos veículos ou trabalhavam efetivamente em dois ou três empregos (não apenas recebiam vencimentos em empresas públicas ou privadas); e os que desenvolviam seu próprio negócio, associando-se a bandidos ou policiais-bandidos, intermediando o acesso a verbas oficiais, descobrindo segredos das pessoas para chantageá-las. A situação mais triste era a dos jornalistas que, embora competentes, entravam nessas jogadas, por pura insegurança.

Os ventos da mudança

O Brasil experimentou, na década de 1950, uma revolução industrial tardia, com a implantação de grandes empresas estatais e privadas dentro de um modelo gerencial que excluía as formas anteriores de corrupção. Com isso, o grosso da publicidade transferiu-se de vez para as agências, que haviam surgido aqui na década de 1920 mas só então ampliaram decisivamente sua presença no mercado: a figura do jornalista corretor de anúncios ficou relegada a áreas marginais: editais de alguns órgãos públicos, cursos vestibulares, empresários viciados em matéria paga (que os jornais sobretaxavam para disfarçar como se fosse matéria editorial) etc. Difundiram-se, aos poucos, as assessorias de imprensa (não mais de “comunicação” ou de “relações públicas”) realmente profissionais.
 
A pressão dos profissionais decentes para obter a qualificação da categoria em nível superior, que data de 1919, vinha crescendo lentamente, à medida que se tomava consciência de quanto o sistema propiciava todo tipo de distorção na informação jornalística. A criação dos cursos de jornalismo estava prevista na regulamentação profissional de 1938; as primeiras faculdades surgiram na década de 40. Os contatos internacionais desenvolvidos durante e no pós-guerra evidenciavam o atraso técnico da imprensa brasileira – não apenas em termos de equipamentos, o que foi fácil de resolver, graças às linhas de crédito do governo; mas também e principalmente quanto a procedimentos que, direta ou indiretamente, envolviam a formação de pessoal.
 
Pouca gente se lembra, mas a instituição da obrigatoriedade do curso superior era iminente desde o final da década de 50 e foi estipulada numa lei do início dos anos 60. Foi a expectativa da edição dessa lei que levou o sujeito que está escrevendo esse artigo, inimigo jurado da burocracia, a registrar-se na Delegacia Regional do Trabalho, em 1961. A aplicação da exigência foi sendo protelada por dois motivos: primeiro, a pressão dos donos de jornal, que resistiam ao inevitável aumento das folhas de salários e à mudança dos métodos empresariais (a redação padronizada dos textos noticiosos tornava ridículos os elogios das matérias pagas disfarçadas, por exemplo); segundo, a intervenção do governo norte-americano.
 
Na sua análise da Revolução Cubana, os Estados Unidos concluíram que o papel dos jornalistas foi importante para Fidel Castro e seus partidários: teriam municiado os guerrilheiros com informação e, de um modo ou de outro, ajudado a torná-los simpáticos e populares. Atribuíam esse fato à difusão das teses marxistas, na época intensa na América Latina; promoveram, então, através do Ciespal, organismo sediado no Equador, a adoção de uma formação básica que se fundava no estruturalismo, então entendido como alternativa a Marx. Parte importante do projeto era a diluição do conteúdo crítico inerente ao jornalismo em um curso de “comunicação social” que formaria também publicitários, pessoal de relações publicas e cineastas.
 
Na maioria dos países latino-americanos foi feito assim. No Brasil, a essa altura um país já industrializado, o parecer Celso Kelly, que instituiu os cursos de comunicação, em 1968, previa o curso polivalente, mas admitia a especialização por área profissional; as escolas que optaram pela polivalência (como a da Universidade Federal do Rio de Janeiro) tiveram seus formandos recusados pelo mercado e foram obrigados a rematriculá-los na habilitação pretendida.
 
O decreto-lei de 1969, que instituiu, afinal, a formação de nível superior, estava pronto há muito tempo e vinha sendo retido em função dessas pressões a que era sensível o General Artur da Costa e Silva. Mas sairia da gaveta mais cedo ou mais tarde. .

Os “idiotas da objetividade” 

Na década de 60, os grandes jornais do Rio de Janeiro e São Paulo – à exceção do Jornal do Brasil, que adotou, a partir da contratação de redatores, as normas de tratamento do texto do Diário – tinha horror aos redatores de copy desk. A razão é que, em 1962, foram esses redatores que garantiram o êxito da uma greve inédita nas redações cariocas. Os objetivos eram claros: tínhamos registrado em carteira um salário pequeno – o mínimo ou pouco mais. A maior parte do que recebíamos era por fora, o que significa não ter direito a férias, 13º (que foi criado por essa época) e à aposentadoria ou verbas rescisórias correspondentes ao ganho real. Precisávamos acabar com isso.
 
Mas o que de fato incomodou é que, depois de paralisar o Jornal do Brasil, um piquete foi para a porta do Globo e, sentado na frente dos caminhões – eu, José Ramos Tinhorão e mais alguns – , impediu a distribuição dos pacotes já impressos. Outras equipes paralisaram o Correio da Manhã, o Diário de Notícias e os demais jornais. Na linguagem apaixonada da época, isso significava que “um grupo de jovens comunistas” havia maculado a sagrada liberdade das empresas jornalísticas. Houve uma tentativa de nos colocar numa lista negra (quando os redatores saíssem do JB, ninguém mais os contrataria), mas não teve êxito: o primeiro a violar esse pacto, se é que dele participou, foi Samuel Weiner, dono da Ultima Hora.
 
Essa é a origem da campanha movida contra os “idiotas da objetividade” (o copy desk do Jornal do Brasil), por Nélson Rodrigues, cuja coluna era freqüentemente pautada por Roberto Marinho, dono de O Globo (se deixassem por conta dele, Nélson só escreveria sobre os temas existenciais da classe média, seu assunto de eleição). Só mais tarde, sentindo-se protegido da subversão pelo AI-5, Marinho (homem informado, sabia que o texto de O Globo era deficiente): contratou esse que lhes escreve, em 1970, para reformá-lo, o que foi feito até que assumiu, como diretor de redação, outro profissional oriundo do Diário Carioca, Evandro Carlos de Andrade. Passei, então, à editoria nacional.
 
Por essa época, a imprensa paulista, que havia começado a reforma pelo setor de revistas, principalmente com Realidade, iniciou a transformação de seus jornais, a começar pelo Jornal da Tarde, edição vespertina revisteira do Estadão.

As razões da elite

É claro que a existência de escolas superiores de jornalismo foi vista pelos profissionais que já estavam trabalhando– principalmente os menos competentes e menos éticos, mas também alguns competentes e inseguros – como ameaça. Esse é o tipo de reação que ainda hoje se manifesta toda vez que, em alguma região, inaugura-se um curso de jornalismo ou profissionais formados chegam em busca de trabalho. Culpam-se as escolas pelos defeitos que têm e pelos que não têm; exige-se do recém-formado um tipo de conhecimento que só experiência extensa pode garantir; alega-se que, se o jornalismo depende de talento, o curso universitário é inútil. Mas isso passa com o tempo, até porque, mesmo se o jornalismo fosse atividade restrita a pessoas talentosas – como, por exemplo, a composição de sinfonias ou a pintura de quadros –, ainda assim o aprendizado seria útil, como são úteis os estudos de música e de artes plásticas.
 
O liberalismo sempre foi popular, marcadamente entre as elites intelectuais. Nos últimos anos, ele tem sido apresentado como a face simpática da globalização e valorizado por expressões como abertura: quem é a favor do fechamento?. Ora, ser liberal inclui o combate às regulamentações em geral, deixando a decisão ao mercado. A exigência da formação superior é vista como restrição antidemocrática; caberia apenas em áreas como a medicina (em que pese a proliferação dos terapeutas) e a engenharia, que “envolvem responsabilidade pela vida humana”.
 
A elite – incluindo a intelectualidade, principalmente na área de ciências humanas – , realiza estranhas transferências: culpa o empregado por decisões do patrão, o intermediário pela mensagem, o veículo pelo conjunto de forças econômicas e políticas (poder concedente, financiadores, detentores de tecnologia, anunciantes) que o sustentam. É claro que, dessa perspectiva, a informação jornalística absorve uma infinidade de culpas; por que, então, não começar pelo jornalismo essa liquidação de direitos adquiridos, agora chamados de privilégios? Quem sabe se depois de atingir os jornalistas, conseguirão enfim “abrir” as corporações de advogados, economistas, matemáticos, administradores, agrônomos, veterinários etc. – nenhum deles responsáveis diretamente “pela vida humana”?
 
Para alguns jornalistas, em geral mais bem pagos, situados mais próximos da direção de grandes empresas ou empregados em órgãos públicos, a formação universitária específica também seria dispensável. Essa opinião os aproxima da elite com que convivem e a que, ideologicamente, pertencem; valoriza-os diante dos acadêmicos (comunicólogos, antropólogos, sociólogos…);. tem a elegância dos anarquistas de salão (lembram-me Andrèa Chenier, na ópera de Umberto Giordano, cantando a revolução francesa nos salões da corte), o charme dos democratas de fachada; parece altruísta, embora não seja – afinal, quanto mais gente despreparada houver nas redações, mais intensamente brilharão essas estrelas.
 
Outro aspecto da questão é o culto da excepcionalidade. Admitamos que alguns indivíduos sejam capazes de formar uma cultura autodidata e aprender as técnicas jornalísticas à primeira vista. Sabe-se de casos raros de meninos de 15 anos capazes de tecer considerações pertinentes sobre a Teoria dos Quanta, ostentar um belo currículo de produções artísticas ou comandar revoluções. Mas isso não significa que esses talentos desapareceriam se estudassem mais, ou que seja possível, em regra, nomear professores titulares, maestros de sinfônicas ou generais de exército de 15 anos. 

As razões patronais

A retórica contrária à formação universitária dos jornalistas sustenta que, se a profissão é “aberta a todos” nos Estados Unidos e na Europa, então aqui também deve ser.
 
Em primeiro lugar, esses países têm uma tradição que vem do publicismo do século XVII, na Europa, e do tipo de colonização que os governos ingleses e, depois, americanos, estimularam, instalando cidades em terras tomadas dos índios: entre os serviços disponíveis nessas cidades incluía-se o bar, a delegacia com seu xerife e o jornal.
 
Em segundo lugar, a suposta abertura não existe em lugar algum.
 
Nos países europeus, as regulamentações variam, mas é comum que os jornalistas sejam submetidos a provas de tempos em tempos, ou a sistemas de seleção corporativos que lembram as guildas medievais. O nível superior é geralmente exigido e alguns países preferem a pós-graduação – equivalente ao mestrado profissionalizante que se tenta agora introduzir no Brasil. Na Inglaterra, onde os tablóides de escândalos constituem problema sério, cogita-se há anos de tornar obrigatória a formação superior específica. Os cursos de jornalismo de universidades espanholas, principalmente a de Navarra, têm prestígio internacional, mesmo no setor empresarial brasileiro.
 
Nos EUA, o mercado altamente desenvolvido e a forte disputa pelos postos de trabalho alia-se à tradição (foi lá que surgiram os cursos superiores de jornalismo no início do século XX, por iniciativa de um famoso magnata da imprensa, Pulitzer) para tornar a exigência até certo ponto dispensável: os jornalistas, em imensa maioria, graduaram-se em universidades ou, raramente, se formados em outras áreas, cursaram mestrado profissionalizante em jornalismo – oferecida, por exemplo, pela Universidade de Columbia. Por outro lado, a profissão é vigiada por poderosos grupos de pressão de ideologia variada, predominando, é claro, os conservadores; em vários estados, a sindicalização é praticamente compulsória. Leis regulam a atividade e algumas nos parecem exóticas: aquela, por exemplo, que, em nome dos “direitos humanos”, veda a publicação de nome ou imagem de vítimas antes da comunicação formal à família. No caso da explosão das torres de Nova Iorque, quando não se dispunha de endereço e parentesco de doentes ou mortos, esse tipo de informação deixou de ser veiculado e, por isso, parentes de milhares de pessoas desaparecidas tiveram que sair pela rua colando retratos nas paredes, percorrendo dezenas de necrotérios e hospitais.
 
Em resumo, a exigência da formação superior específica é uma posição vanguardista do Brasil, perfeitamente adaptada à nossa realidade: um país grande, de culturas variadas, com milhares de cidades onde o jornalismo com qualidade e ética ainda não chegou, e onde leis equivocadas – como a que obriga as prefeituras a divulgar seus editais em jornal local – estimulam o surgimento de veículos de tiragem insignificante, circulação temporária, sem informação jornalística que preste, comprometidos com o poder local. A interiorização dos cursos de jornalismo é um dos instrumentos para mudar esse estado de coisas e serão as cidades do interior as primeiras prejudicadas pelo retrocesso que significaria o fim da exigência de formação específica.
 
Outro argumento comum é que a qualidade da informação melhoraria se os repórteres fossem especialistas no tema sobre que escrevem. A falácia se torna evidente quando se considera a questão na prática:
 
(a) a fragmentação do conhecimento é hoje de tal ordem que seria impossível contemplar todas as áreas de interesse, os mesmo as principais – as redações ocupariam estádios. Será um engenheiro civil capaz de avaliar questões pertinentes à engenharia de alimentos? Terá um economista de formação monetarista ortodoxa condição de julgar com isenção os êxitos de uma política keynesiana? A guerra é um assunto de estrategistas, cientistas políticos, historiadores, geógrafos ou especialistas na indústria de armamentos?
 
(b) os empecilhos de natureza ética seriam um obstáculo nos casos, por exemplo, de médicos tratando de procedimentos de outros médicos ou de advogados acompanhando processos. Cada profissão protege-se a seu jeito, seja impedindo a manifestação pública da opinião antes da comunicação aos conselhos profissionais (o caso dos médicos), seja criando rituais exóticos de referência, tais como meritíssimo (juiz), nobre (o colega), egrégio (o tribunal) e a coleção de frases feitas latinas, chamados de brocardos, que se encontram sob a rubrica “revisor” em quase todas as edições brasileiras do Words, da Microsoft. Nada mais sagrado, para um especialista, do que o jargão do ofício; para ele, dependendo da área, temos refrigeradores, não geladeiras; viaturas, não carros; ventre, não barriga; bovinos, suínos e caprinos não bois; porcos e cabras; frascos ou invólucros. não garrafas. De fato, o indivíduo teria de abandonar os comportamentos e até itens da linguagem exigidos em sua profissão originária para atuar como jornalista.
 
(c) a dupla formação seria exceção, jamais de regra. Representaria, socialmente, uma perda de tempo (seis anos na faculdade de medicina ou cinco na de direito, a residência ou estágio, mais cerca de dois anos para dominar as técnicas jornalísticas e conhecer o mínimo de ética profissional) – menor para algumas formações (em letras, por exemplo, a graduação dura quatro anos) e maior para outras (um bom físico teórico estuda por até 25 anos). Para veículos ou assessorias, um custo mais elevado, já que trabalhariam com profissionais de preparação mais longa.
 
(d) empresas grandes e prósperas (na realidade ou na imagem que projetam) alegam que seriam capazes de formar seus próprios profissionais. O argumento é apoiado pela experiência que têm em cursos de treinamento oferecidos a formandos de jornalismo, selecionados com rigor em extensas áreas do país. Mas a experiência seria outra caso o público se ampliasse: os cursos de jornalismo, se ministrados honestamente, são, ao lado do Instituto Rio Branco, que forma diplomatas, os únicos a preparar o aluno para a utilização desse instrumento que é a língua nacional, em que se pretende produzir veículos de circulação abrangente. E, na melhor das hipóteses, o profissional adestrado exclusivamente por uma empresa terá seu mercado reduzido: aprenderá, se aprender, a trabalhar em uma só mídia (jornal; revista; rádio; televisão; internet; assessoria a empresas e instituições). A distinção técnica entre os sistemas de produção das mídias tende a aumentar na medida em que elas são crescentemente informatizadas e cada jornalista é levado a assumir várias funções (repórter; redator; editor de textos e imagens; diagramador; revisor; produtor de rádio ou telejornalismo etc.). É consensual que o grau de desenvolvimento do mercado brasileiro não permite esse nível de especialização na graduação, mesmo nos maiores centros produtores do país, São Paulo e Rio de Janeiro.

A quem interessa?

A argumentação jurídica utilizada por um promotor paulista para obter de uma juíza substituta a liminar (tecnicamente, a tutela antecipada) que suspendeu a exigência de formação universitária (chamá-la de diploma é assumir ressentimento comum em um país de iletrados) é absurda. A regulamentação profissional é muito clara quando estabelece as funções privativas dos jornalistas profissionais (repórter, redator, editor…): como os leitores de jornal, ouvintes de rádio ou espectadores de televisão sabem, qualquer pessoa pode manifestar-se nesses veículos sobre temas de sua especialidade, como articulista ou comentarista. A categoria também não rejeita, é até promove, o exercício amador do jornalismo em bairros carentes ou nas escolas de primeiro e segundo grau, como forma de estimular o aprendizado do idioma, o contato humano, a integração social e despertar a curiosidade de crianças e adolescentes em busca do conhecimento: nossa profissão apenas crescerá com o ingresso nos cursos de jornalismo de pessoas motivadas por essas iniciativas. A existência da profissão não significa, portanto, nenhuma restrição à liberdade de expressão – o que, aliás, é explicitamente estipulado na Constituição.
 
Ainda assim, a liminar foi mantida por um juiz no desempenho excepcional da função de desembargador. A partir desse momento, inexistindo temporariamente (até o julgamento do mérito), em todo o país, qualquer limitação ao exercício da profissão de jornalista, sindicatos e delegacias regionais do trabalho passaram a receber pedidos de registro de todo tipo de gente – alfabetizados alguns, analfabetos outros, vaidosos alguns, marginais outros. Vale tudo.
 
Um jornal paulista empenhado na campanha contra a formação universitária dos jornalistas por motivo pessoal de seu diretor regozijou-se. Parecia que estava vencendo uma batalha contra o “corporativismo” dos jornalistas e a “indústria do ensino”. No entanto, nenhum jornalista competente está de fato ameaçado pela proliferação de falsos jornalistas e nenhuma escola que tenha um currículo decente perderá alunos por isso: o curso de publicidade, onde não há limitação de formação específica ou superior (entre outras razões porque o responsável pela informação publicitária é, em última análise, o cliente, que a patrocina, informa e aprova), é um dos mais procurados.
 
A questão é outra. O interesse é do povo e, embora essa palavra esteja em desuso na sua anterior nobreza, da pátria. Na sociedade da informação, não importa apenas dispor de canais: é necessário produzir conteúdos claros, éticos e honestos. O desenvolvimento de padrões técnicos elevados, a expansão do jornalismo de qualidade a todo território do país, a instalação de sucursais e correspondentes no exterior são questões que envolvem a auto-estima da população das diferentes regiões, a perpetuação da cultura e da soberania nacionais, com as variedades que ela comporta; um conjunto de fatores que nos permitirá, algum dia, ver a nós mesmos e ao mundo com a perspectiva brasileira. Na sociedade globalizada, um jornalismo de má qualidade submergirá no mar de discursos imperiais e de valores homogêneos que se difundem com competência. 
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Professor titular de redação jornalística da Universidade Federal de Santa Catarina, com 47 anos de profissão. Doutor em Lingüística, mestre em comunicação. Dos cursos de graduação em Jornalismo e em Comunicação e Expressão Gráfica; programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Lingüística, em Mídia e Conhecimento (Engenharia de Produção) e em Estudos de Jornalismo (especialização). Integrante das comissões do Exame Nacional de Cursos (1998, 1999, 2000, 2001, 2002) e da Avaliação das Condições de Ensino de Jornalismo da Sesu (2000) do INEP-MEC (2002).