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Jornalismo e torcida

Por Fabiano Mazzini – Com enorme insistência e alguma sorte é possível encontrar nos textos produzidos nos últimos dias pelos jornalões e revistas algo que possa destoar do clima de ressaca moral que se instalou por aqui desde a quarta-feira (12/09), quando o Senado reforçou o apego de Renan Calheiros à cadeira de presidente da Casa. Eu estava justamente fazendo uma checagem da repercussão do caso na Internet, quando deparei com um tópico da crítica diária do ombudsman da Folha de S. Paulo, Mário Magalhães, de 13/09, que reproduzo abaixo para situar o caro leitor:

“Jornalismo não é Senado – A decisão do Senado não deveria ser considerada pelo jornalismo como fim do caso inaugurado com a revelação da revista Veja sobre o pagamento de despesas pessoais de Renan Calheiros por lobista de empreiteira. Cabe persistir na apuração sobre os negócios do senador, inclusive aqueles que mereceram “absolvição” dos seus pares. Uma função essencial do jornalismo é fiscalizar o poder, seja ele qual for. O exercício pleno do jornalismo, em destaque o escrutínio do poder, deve independer da disposição dos Poderes de cortar ou não na própria carne.”

O que à primeira vista pode parecer não ter nada de singular, veio-me como o melhor exemplo do que procurava para buscar um outro olhar sobre o tema, cuja ausência já incomodava bastante àquela altura. Magalhães foi preciso ao reapresentar a essência do jornalismo, ainda que por vezes ela pareça adormecida lá no fundo das nossas consciências. Foi, então, que enviei o comentário abaixo ao ombudsman, com algumas poucas modificações, com o propósito de uma abordagem contra a maré de decepção, pessimismo e quase melancolia que atingiu boa parte da imprensa brasileira.

A recomendação para que os jornalistas cumpram sua função essencial de fiscalizar o poder e persistam nas apurações sobre os negócios do senador está longe de ser apenas uma oportuna sugestão de pauta jornalística. No fundo, o conselho abre a possibilidade para que possamos questionar sobre o que a imprensa produziu de investigação própria a partir da denúncia inicial, ao longo das muitas semanas da agonia renanzista. Respondo que foi muito pouco, salvo raras exceções, como a reportagem do Jornal Nacional, em Alagoas, que fez desmoronar a defesa do senador para a sua movimentação financeira.

No geral, veículos e jornalistas se limitaram a acompanhar o desenrolar de uma novela cansativa, cuja pobreza de roteiro chegou a impressionar. Isso diz respeito ao desaparecimento da velha e indispensável reportagem de investigação jornalística como rotina dos principais diários e revistas do país. Avalio que, mesmo que não tenha mais interesse ou estrutura para essa tarefa, pelo menos caberia à imprensa a obrigação de explorar criticamente o que está ao alcance de todos, como boas pautas à espera de apuração.

Sobre isso, parece-me emblemático o tratamento indiferente de grande parte dos veículos para os sinais de fragilidade que borbulhavam do palco do julgamento. Sito alguns deles: o Conselho de Ética do Senado não possuía sequer um regimento interno até ser chamado a atuar; a escolha de um relator para o projeto de cassação foi uma minissérie à parte; teve ainda o seriado da escolha do presidente do Conselho, igualmente repleto de capítulos e dramatizações e, por fim, o episódio da draconiana sessão secreta quase surpreendeu os jornalistas, como aquela notícia de plantão de telejornal. Tudo muito característico de uma cobertura burocrática, baseada apenas no acompanhamento da tramitação da denúncia e seus (inúmeros) episódios midiáticos, mas vazia de contextualização, sem histórico e distante dos bastidores. Pelo que se viu, faltou o making off do ensaio sobre a cassação.

Infelizmente, esse cenário ajuda a explicar o tratamento que a imprensa oferece a temas de fundamental importância para o resgate da política como combustível da democracia, condição indispensável para que não desistamos de nenhuma das duas. Afinal, se queremos recuperar os melhores hábitos políticos no país, o que dizer da ausência de uma cobertura persistente, crítica e de caráter cívico sobre a pauta da reforma política, que permanece entregue às conveniências de quem tem interesse direto – mas não exclusivo – em relação à mudança pretendida? Isso tem estreita relação com a maneira pela qual se faz jornalismo político hoje no Brasil. Cobre-se o embate oposição x governo como o único roteiro possível, pronto para ser usado – ou adaptado – nos seguidos episódios de crise.

Se nós, jornalistas, não refletirmos sobre isso, dificilmente poderemos aceitar – mesmo que apenas por princípio democrático -, a crítica recorrente sobre o protagonismo da mídia em cada um desses episódios. Crítica, aliás, cada vez mais freqüente, e que para alguns pesquisadores já traduz a manifestação de um novo momento de partidarismo da imprensa. Pouco adianta o bate-boca sobre se isso não passa de uma nova versão da mesma teoria conspiratória ou que a acusação serve aos interesses do governo para cercear a liberdade de imprensa. No fundo, quando os fatos e seus enquadramentos constituem alimento quase diário para essa crítica, é porque há algo estranho no nosso meio. Vou trazer apenas dois episódios recentes, ainda dentro do ensaio da cassação, que dizem muito sobre isso.

O primeiro é o que considero uma desproporção entre o que se esperava como desfecho do julgamento no Senado e a reação de grande parte da imprensa para o que aconteceu. Como leitores, fomos informados desde a véspera que qualquer decisão era possível, o placar seria apertado e, portanto, o resultado, visto sob a lente da correlação de forças na Casa, estaria dentro da normalidade. Mas as manchetes do dia seguinte sugerem algo muito diferente: o mundo moral dos homens caiu sobre o Senado da República, num ataque de indignação que eu jamais tinha presenciado nos meios de comunicação do país – a mesma que nos falta em favor da urgente reforma política, volto a insistir. Ficou claro que vários dos principais veículos do país foram surpreendidos, o que já seria digno de nota.

Não tive como deixar de suspeitar que a demonização do parlamento, previamente anunciada e deflagrada logo no momento seguinte, ainda que centrada na disputa entre oposição e governo, não cumpriu outro objetivo que não fosse o de estender o desgaste ao Executivo, habilmente elevado à condição de avalista do renascimento de Calheiros. E o curioso é que o voto secreto passou a servir de enredo para uma falsa polêmica, o outro episódio que gostaria de comentar. O estranhamento é que, de súbito, jornalistas e comentaristas descobriram que os políticos mentem, sobretudo quando a perspicácia do trabalho jornalístico os obriga a revelar algo protegido pelo sigilo, e aqui não cabe definir se certo ou errado, mas apenas nos certificar da regra vigente. Assim, o interesse da imprensa agora é descobrir quem mentiu ao confidenciar o voto. Sei não, mas isso tem jeito de mais uns capítulos extras de crise, ao longo dos quais a mídia poderá exercitar inúmeras hipóteses, aliás, sua mais nova habilidade. Considerando que há outras três denúncias contra o presidente do Senado, a agenda está garantida até o final do ano, no mínimo.

O fato é que, se queremos um parlamento que revogue qualquer mecanismo de perpetuação das decisões tomadas às escondidas, por que não historiamos como os senadores trataram dessa questão até agora. Aí veremos, por exemplo, que vários parlamentares que hoje estão na oposição rejeitaram, há quatro anos, o fim do voto secreto, quando analisavam uma proposta de emenda à Constituição. Será que as razões que os levaram a esse posicionamento cessaram? Ou estamos diante de mais um caso típico de quem está com ‘a faca no pescoço’? Ou será que os valores da coerência e da transparência podem explicar o motivo pelo qual alguns dos veículos que se situaram entre os mais indignados não nomearam esses senhores ao longo da semana, mas apenas os senadores ‘covardes’ e ‘mentirosos’ do campo governista?

A indignação seletiva apenas reforça a tese do desequilíbrio do noticiário e de partidarização da mídia. Pior: faz com que nos lembremos que para os jornalistas aceitarem a pauta proposta pelo ombudsman é indispensável que antes eles deixem a torcida, guardem a bandeira e partam para campo. E, claro, cumpram a função que a sociedade espera deles.

Fabiano Mazzini
Jornalista e professor de jornalismo da Faesa (ES)
e-mail: Fabianomazzini@uol.com.br
tel.: (27) 32995910
Vila Velha – ES